Mais de um ano e meio após o início da pandemia da covid-19 é possível e urgente esboçar um diagnóstico dos seus efeitos sociais, das vulnerabilidades que revelou da nossa organização social, económica e política e de possíveis vias de cura de um «mundo «doente». São estes os objetivos de Eduardo Paz Ferreira, professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, neste livro que toma como mote o discurso do Papa Francisco ao Corpo Diplomático Acreditado junto da Santa Sé, em 8 de fevereiro de 2021.
O actual decano do Grupo de Ciências Jurídico-Económicas da Faculdade de Direito de Lisboa inspira-se também numa frase de uma referência da sua juventude, John Kennedy, no seu apelo a que homens de todo o mundo lutassem contra os «inimigos comuns do homem»: a tirania, doenças, pobreza e a guerra.
A pandemia de covid-19 não tem sido apenas uma crise sanitária – espoletou uma devastadora crise económica e expôs as fragilidades ambientais do nosso mundo, em que a destruição de habitats naturais potencia a passagem de vírus de animais selvagens para seres humanos e o desencadeamento de novas pandemias.
Recordando o dilema inicial, que inflamou as redes sociais, sobre se os governos deviam dar prioridade à proteção da economia ou ao combate à doença, Paz Ferreira mostra que se tratava de um falso dilema, pois «o agravamento da doença teria sempre consequências extremas sobre a actividade económica» (p. 27).
A dimensão política foi fundamental em todo o processo e um dos seus aspetos foi a postura negacionista e obscurantista de importantes líderes políticos, como Trump e Bolsonaro, que provocou centenas de milhares de mortes evitáveis.
Os confinamentos, as falências, a desconfiança face às instituições públicas induziram fenómenos de disrupção social, quebrando laços de convívio e solidariedade, incentivando estado de fadiga crónica e depressão. Expôs também as patologias sociais do mundo em que vivemos. Como disse o secretário-geral das Nações Unidas, «A covid-19 foi comparada a um Raio-X, revelando fracturas no esqueleto frágil das sociedades que criámos. (…) O mito de que estamos todos no mesmo barco. Se é verdade que estamos todos a flutuar no mesmo mar; é também evidente que alguns estão em super iates enquanto outros agarram-se aos destroços à deriva».
A desigualdade social deve ser considerada como um fator favorável à pandemia. Laura Spinney, num artigo escrito no Guardian, a 12 de abril de 2020, afirma-o claramente: a desigualdade não se limita a piorar os efeitos da pandemia. Foi entre as populações a viver em condições miseráveis que o vírus se propagou, afetando toda a sociedade.
Neste cenário sombrio, surgem alguns raios de esperança de lugares inesperados. Joe Biden mostrou capacidade para liderar o combate à pandemia com a sua declaração: «nós não viremos a estar totalmente salvos até que o Mundo esteja salvo» e o seu apoio a uma quebra temporária de patentes para promover a produção de vacinas e permitir que elas sejam fabricadas não só na Europa e Estados Unidos, mas também em países pobres. É lamentável que a União Europeia – à exceção do governo espanhol – não tenha apoiado a proposta de levantamento das patentes. Os argumentos das farmacêuticas em defesa dos seus interesses expõem a sua atitude hipócrita, pois foram os apoios públicos que lhes permitiram fazer investimentos em investigação e inovação que lhes garantiram lucros gigantescos.
Surpreendentemente, muitos dos apóstolos da austeridade radical no tempo das «crises das dívidas soberanas», incluindo o FMI e o Banco Mundial consideram agora uma prioridade aumentar as despesas em dívida pública. Vítor Gaspar, atual Chefe do Departamento Financeiro do FMI, defende que «as companhias de alto rendimento, que prosperaram com o coronavírus, deverão pagar taxas adicionais de solidariedade para com os que foram mais prejudicados, o que asseguraria a concretização de um esforço colectivo» (p. 99).
Os cidadão de todo o mundo, os agentes do setores públicos e de setores privados, não podem, no entanto, ficar dependentes da tomada de decisão de líderes políticos e devem unir esforços, tendo como meta, como escreve Paz Ferreira, não «repor o padrão de sociedade que nos conduziu à pandemia», mas «criar um modelo em que todos se sintam protegidos» (p.222).