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Diário do Ano C-19

Diário do Ano C-19

30
Mar20

Ricardo Jorge, o médico mal-amado na crise da Grande Guerra e da pneumónica

João Miguel Almeida

Rui Mateus Pereira sobre Ricardo Jorge, retratado como figura mal-amada e ignorada pelos militares portugueses durante o período da Grande Guerra e da pneumónica, com resultados desastrosos.

Antropólogo que se dedicou à História, Rui Mateus Pereira foi um dos co-organizadores do ciclo que assinalou o centenário da Grande Pneumónica. Perdemos muito com o seu recente falecimento. Seria uma pessoa que nos ajudaria a compreender e refletir sobre a crise do covid-19.

29
Mar20

Memória e advertência da última grande pandemia

João Miguel Almeida

Um documentário sobre a dita «gripe espanhola», nome enganador porque a pneumónica não começou em Espanha e o seu início pode ter sido nos Estados Unidos, no Kansas. O video, enriquecido com impressionantes fotografias, excertos de filmes, cartazes, desenhos, mostra o devastador efeito da «gripe espanhola» no final da Grande Guerra e início do pós-Guerra. A pandemia espalhou-se em três vagas, sendo a segunda e a terceira mais mortíferas do que a primeira. Segundo uma estimativa a «gripe espanhola» matou cerca de cinquenta milhões de pessoas, vinte milhões dos quais só na Índia.

Foi uma advertência. Com a atual tecnologia e ciência podemos evitar uma catástrofe semelhante. Mas só se combatermos um vírus que a diretora geral da saúde em Portugal classificou de «muito inteligente» com a nossa inteligência. 

28
Mar20

Riso leve em tempos pesados

João Miguel Almeida

Em janeiro comprei a coleção completa de filmes de Jacques Tati. Cada filme é um olhar para o lado cómico, leve e belo de outro tempo deste mundo. Só conhecia alguns dos filmes e todos fazem falta a um tempo tóxico como é o nosso. Hoje vimos As Férias do Sr. Hulot. O meu filho de oito anos estranhou o ritmo lento da ação, mas foi entranhando o humor singular de Tati.

27
Mar20

A pandemia e os espectros europeus

João Miguel Almeida

Há palavras que contagiam tanto ou mais do que vírus. São exemplos destas palavras as que o ministro holandês Wopke Hoekstra terá proferido numa reunião por videoconferência do Conselho Europeu na qual o governo espanhol declarou que não tinha margem orçamental para lidar com a crise do covid-19. Para o ministro holandês, a reação adequada da Comissão Europeia a estas declarações seria investigar o governo espanhol. O adjetivo «repugnante», com que António Costa classificou as declarações de Wopke Hoekstra, propagou-se também a alta velocidade. Outro vírus? Creio que o adjetivo de António Costa foi um anti-corpo necessário.

A irracionalidade de Bolsonaro ou de Donald Trump não são piores do que o moralismo aparentemente racional do ministro holandês. Trata-se, literalmente, de culpabilizar a vítima ou, no mínimo, de suspeitar da vítima. O governo espanhol tem errado, mas nenhum desses erros introduziu o covid-19 em Espanha. Mesmo se fosse esse o caso, o povo espanhol não pode servir de bode expiatório de políticas ineficazes, nenhum povo pode sê-lo.

A desconfiança do ministro holandês evoca espectros não muito longínquos do desnorte europeu durante a crise de 2008 e anos subsequentes. Nessa altura circulou, a partir do Norte europeu, a palavra PIGS para designar países como Portugal, a Itália, a Grécia e a Espanha, a braços com a crise das dívidas soberanas, explicadas de modo expedito por um ministro das Finanças holandês com o gosto dos povos do Sul por copos e mulheres.

Evoca ainda espectros mais longínquos, do período de entre duas Grandes Guerras, em que os povos europeus e de todo o mundo eram hierarquizados segundo critérios raciais ou civilizacionais, a xenofobia justificava políticas e legitimava um projeto de Europa que felizmente foi derrotado durante a II Grande Guerra.

Ensaiar a definição de uma política europeia de resposta à pandemia e a recessão que ela vai provocar com atitudes de arrogância de países que se veem como «moralmente mais puros» em relação a outros, além de xenófobo, é estúpido. O covid-19 não se deixa barrar por fronteiras, não escolhe as vítimas de acordo com critérios ideológicos ou morais. Se não nos unirmos para lhe resistir com inteligência, daremos ao covid-19 como aliados todos os demónios que no passado conduziram a Europa à autodestruição.

26
Mar20

Missão «cartas no correio» cumprida

João Miguel Almeida

Hoje, à hora do almoço, cumpri a missão de enviar pelo correio cartas dos meus pais, que têm mais de setenta anos e estão confinados à sua casa. O meu pai já tinha tentado colocar pessoalmente a carta no correio, quando a crise do covid-19, ainda estava numa fase mais inicial, mas havia uma bicha enorme. Ficou parado nos degraus da escada do edifício, e atrás dele estava um homem a tossir-lhe nas costas.

Aparentemente a missão estava facilitada porque da janela da minha casa posso ver a estação dos correios e a quantidade de pessoas à espera da sua vez, cá fora. Primeiro observei que havia uma enorme bicha de manhã e que à tarde esta desaparecia o que, achei me facilitava muito a ida ao correio. Mas ontem descobri a explicação do fenómeno: por causa do covid-19, os correios reduziram o horário de atendimento ao público para o período entre as nove da manhã e a uma e meia da tarde. Continuei a observação com outro objetivo: o de identificar o momento em que a bicha estivesse mais pequena, mas ela parecia nunca estar suficientemente pequena.

Finalmente decidi-me a sair de casa e a esperar na bicha, já perto da hora do fecho. Tinha cinco pessoas à minha frente e, enquanto esperava, outras foram chegando e parando atrás de mim. Estávamos quietos e mudos e o silêncio humano foi quebrado estrondosamente por uma mulher que não estava na bicha e falava aos gritos, garantindo a um interlocutor ou interlocutora invisível que saía todos os dias. Algumas pessoas da bicha traziam endereços relativos ao covid-19: um homem tinha a cara tapada por uma máscara e, antes de entrar nos correios, solene, calçou umas luvas pretas; uma mulher idosa estava vestida normalmente mas tinha as mãos brancamente enluvadas. Mas a minha «toilette-covid» preferida foi a de uma mulher jovem com a cara tapada por um lenço estilo, óculos escuros e um boné por cima do qual assentavam uns vistosos fones.

Quando chegou a minha vez de ser atendido, saí da rua e entrei rapidamente na estação dos correios. Reconheci o funcionário do outro lado do balcão, que me sorriu. Reparei no chão estava traçada uma linha amarela para indicar ao público algum distanciamento do balcão, mas, pelos vistos, fui o único cliente a reparar na linha amarela, porque todos os outros a passaram. Entre mim e o funcionário havia um separador de plástico ou de outro material transparente qualquer. De resto, toda a operação decorreu normalmente.

Voltei para casa e tomou o banho que estava a adiar desde o início do dia.

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25
Mar20

A sombra da covid-19 nos gestos de cada dia

João Miguel Almeida

A sociedades humanas estão a mover-se para escapar à pandemia ou porque estão a ser destruídas por ela. Neste movimento de proteção das pessoas ou de manifestação de impotência e desespero perante a morte em massa, as sociedades estão a dar provas de existência, depois de Margaret Thatcher e os seus seguidores terem decretado o seu óbito usando a célebre máxima de que «só os indivíduos existem, a sociedade é uma abstração».

Além das transformações em escala macro, dais quais só teremos plena consciência daqui a uns anos, a pandemia está a mudar gestos pessoais e quotidianos, cujo sentido e alcance está a ser reavaliado.

Deixei de calçar sapatos de manhã. Os sapatos ficam lá fora, no pátio, à espera do momento em que os calce para sair à rua, as meias continuam na gaveta, à espera que as tire. Enquanto estou em casa, ando de chinelas.

Deixei de comer fruta com casca, depois de uma rápida lavagem com água. Agora, com uma faca, descasco, pacientemente, maçãs e peras antes de as comer. Talvez porque tenho de esperar para comer uma maçã ou uma pera, como-as mais devagar, mastigando devagar e saboreando cada pedaço. As frutas são saborosas. Compro-as na mercearia do bairro.

Ainda assim, quando a crise passar, vou fartar-me de comer fruta com casca.

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24
Mar20

O estado de emergência em Portugal é justificado?

João Miguel Almeida

A decisão de decretar o estado de emergência em Portugal está a ter um custo pesado – económico, social, psicológico. Só um ganho importante, ou a prevenção de um desastre, pode justificar a adoção e o cumprimento do estado de emergência. Para qualquer pessoa dotada de um mínimo de racionalidade é óbvio que se o estado de emergência evita em Portugal a situação que atualmente se está a viver em Itália é completamente justificável. A questão é a seguinte: é possível estabelecer uma relação de causa-efeito entre o estado de emergência em Portugal e a exclusão de um cenário dantesco como é o de Itália nos dias de hoje? Esta questão relaciona-se com outra: Itália é um exemplo do que pode (ou vai) acontecer noutros países, ou pelo menos em alguns dos outros países, ou é uma exceção?

É possível argumentar que Itália é um exemplo do que pode acontecer em Portugal e explicar por que é que o cenário italiano é mais provável em Portugal do que noutros países: tanto Itália como Portugal têm uma estrutura etária semelhante – vinte e pouco por cento da população com mais de 65 anos – e as pessoas com mais de setenta anos são, consensualmente, um grupo de risco. Além disso, tanto Itália como Portugal têm culturas familiares em que é habitual o convívio entre diferentes gerações e os avós costumam ter uma relação de grande proximidade com os netos. No entanto, a Alemanha também possui uma percentagem elevada de população idosa e está a resistiu muito melhor à pandemia.

Mas também é possível apresentar diferenças entre Itália e Portugal:

Em primeiro lugar, Itália foi um dos primeiros países a ser infetado e a pandemia chegou mais tarde a Portugal. O covid-19 teve mais de um mês para se espalhar sem que as autoridades italianas tomassem qualquer medida de prevenção. Portugal, como a Alemanha, começou a agir quando a pandemia ainda estava no início.

Em segundo lugar, por muito que seja habitual meter italianos e portugueses no mesmo saco dos «países latinos» e «países do Sul», a verdade é que há diferenças culturais entre ambas as sociedades. Apesar de haver muitas Itálias dentro de Itália e de também haver diversidade na sociedade portuguesa, os italianos tendem a ser mais físicos, a ter uma sociabilidade mais intensa, pesa-lhes mais a norma do «distanciamento social». Uma significativa parte da população portuguesa acata facilmente as diretrizes da autoridade pública quando a sua segurança está em causa. Também aqui temos algumas semelhanças com os alemães.

Em terceiro lugar, a organização da informação acerca da saúde pública é diferente em Portugal em Itália – nacional no primeiro país, regional no segundo. O facto de Portugal ser um país mais centralizado facilita a coordenação no combate à pandemia a nível nacional.

Tenho ouvido falar de outras diferenças mas, dado se tratarem de hipótese não confirmadas por qualquer tipo de conhecimento científico ou empírico, não as incluo aqui.

Contra a ideia de que o estado de emergência é justificável é possível afirmar: a relação de causa efeito entre o estado de emergência e evitar uma situação como a de Itália é incerta; o efeito negativo do estado de emergência na economia, na sociedade e na psicologia é certo. O simples estado de calamidade podia prevenir também o que é possível prevenir e ter um menor impacto económico, social e económico.

Sabemos muito pouco sobre o que é o covid-19 e o que pode fazer-nos. A sabedoria popular portuguesa diz-nos que «mais vale prevenir do que remediar». Também nos diz que os doentes podem morrer não da doença mas da cura. Neste caso, quem não morrer do covid-19 pode ser esmagado por uma recessão económica.

Neste contexto de incerteza, é melhor tomar uma decisão discutível e justificada do que não decidir nada. Mas a seguir a esta decisão é necessário tomar muitas outras decisões, discuti-las e justifica-las, porque os espectros associados ao covid-19 não nos vão deixar tão cedo.

23
Mar20

Estado de emergência e transformação pessoal

João Miguel Almeida

O estado de emergência está a mudar-nos, queiramos ou não. Uma amiga minha que, no contexto de um estado normal, quando está em casa e vê uma barata, sai para a rua e fica lá até alguém matar o nojento bicho, já mudou.

Ela estava em casa, em isolamento social, e uma barata apareceu. No atual estado só teve uma saída – matou a barata.

É mais difícil destruir o covid-19.

22
Mar20

Almoço em família por videoconferência

João Miguel Almeida

Hoje cá em casa inaugurámos um novo tipo de almoço em família – o almoço por videoconferência. Eu, A. e o nosso filho, M., ligamo-nos via computador e Skype aos pais e à irmã de A. Três casas, três computadores portáteis, um almoço em família.

Uma parte da conversa foi sobre problemas de imagem e quem é que estava desfocado e quem é que estava focado; outra parte foi sobre a pandemia, as notícias, os artigos em jornais, a política cá e lá fora, as missas online, os trabalhos que M., oito anos, tem feito. M. foi um dos animadores do almoço. Fez um número musical com as mãos e um copo de plástico e leu algumas anedotas. Uma das anedotas podia ser contada com um novo sentido no contexto da quarentena:

«O Joãozinho pede à mãe:

- Mãe, leva-me ao circo, por favor.

- Não, Joãozinho. Se te quiserem ver que venham cá a casa.»

21
Mar20

Operação cartas no correio

João Miguel Almeida

Hoje saí de casa para ajudar os meus pais a por umas cartas no correio como se estivesse a desempenhar uma missão perigosa – e é possível que estivesse a desempenhar uma missão perigosa. A ameaça invisível do covid-19 introduziu no quotidiano uma ambivalência fantástica, em que cada gesto pode ser banal ou de alto risco, banal e de alto risco.

O caminho até à casa dos meus pais são dez minutos a pé, num passo nem muito rápido nem demasiado lento subindo uma avenida, atravessando duas pracetas. Notei as diferenças da paisagem visual em relação aos sábados à tarde em dias de sol do tempo pré-crise: escassas pessoas – nunca vi mais do que três ao mesmo tempo; muitos carros e motas estacionadas, como se esquecidas pelos donos; todos os pequenos estabelecimentos comerciais fechados; através de um portão do Instituto Ricardo Jorge, vislumbrei um homem coberto dos pés à cabeça, com uma máscara na cara, desinfetando o chão, com movimentos lentos, como se cumprisse um ritual.

Mais impressionante eram as mudanças na paisagem sonora: poucas vozes humanas – um homem a falar ao telemóvel, que passou por mim ladeado por uma mulher e uma criança silenciosas; um casal a conversar numa varanda; um casal entrado na idade a chamar uma mulher jovem sentada, sozinha, numa praceta; a algazarra solitária e longínqua de uma criança. Ouvia mais ruídos animais e mecânicos – o bater das asas dos pombos, o latido de um cão, o ronronar dos carros a circular, espaçados e vagarosos, como se estivessem em alerta.

Abri a porta do prédio dos meus pais com uma chave. Em vez de usar o elevador, subi as escadas até ao quarto andar, sem tocar no corrimão. Ocorreram-me memórias de subir ou descer as mesmas escadas quando era criança, ouvindo as vozes e os passos de outras crianças e adultos. Cheguei ao quarto andar. As cartas estavam no tapete à frente da porta da cozinha. Falei com o meu pai através da porta. Peguei nas cartas e desci as escadas, em passo mais rápido.

Ao voltar a minha casa, desinfetei as mãos, despi a roupa, tomei banho, vesti nova roupa. Excesso de zelo? As opiniões dividem-se e o consenso é necessário para conservar a paz e a saúde, quanto mais não seja a saúde mental.

Toda esta operação de gestos meticulosos seria lúdica se a Morte não pudesse espreitar de todos os lados.

Para a semana a operação concluirei a operação, pondo as cartas no correio.

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