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Diário do Ano C-19

Diário do Ano C-19

31
Jan22

As Flechas de Apolo

João Miguel Almeida

A Flecha de Apolo.jpgNa Ilíada, Homero atribui o flagelo da peste que devastam o exército grego às flechas de Apolo, um deus curandeiro e capaz de usar os vírus como uma arma contra os gregos, que quis castigar por terem raptado a filha de um dos seus sacerdotes preferidos: «depois de lançar uma flecha contra os próprios homens, castigou-os sem parar e piras fúnebres com os corpos arderam sem cessar. Nove dias sofreu o exército as flechas de deus. Contudo, ao décimo dia, Aquiles convocou o povo para uma assembleia (…) pois ele sentia pena dos gregos ao vê-los assim.»

No século XXI ninguém recorre a histórias de deuses para dar sentido a uma pandemia, mas os sofrimentos e as emoções humanas perante a peste continuam a ser basicamente os mesmos. As teorias da conspiração mais absurdas coexistem com um conhecimento científico que continua a ser lacunar em relação à covid-19, mas que não pode ser desprezado no combate à doença. A Flecha de Apolo, um livro de divulgação científica sobre a covid-19, escrito no verão de 2020, mostra o que sabemos sobre o vírus SARS-CoV-2 e dá-nos muita informação relevante sobre políticas de saúde pública em contexto pandémico. O autor é médico e sociólogo, com um bom conhecimento da História e da mitologia grega, qualidades que, reunidas, contribuem para a legibilidade e interesse do texto.

O livro contém uma estimativa sobre o período em que a humanidade alcançará a imunidade de grupo, feita antes das vacinas serem produzidas e distribuídas em massa: será este ano, 2022 que, por métodos naturais ou vacinação, o SARS-CoV-2 se tornará endémico. Passará a haver apenas pequenos surtos ocasionais de covid-19 entre pessoas não imunes. É claro que a via natural tem um custo elevadíssimo em mortes e qualidade de vida. Há uma frase que, lida agora, parece anunciar a chegada da Ómicron: «Tipicamente, com o tempo, os vírus tornam-se menos letais como resultado da sua propagação preferencial e da sobrevivência de estirpes mais ligeiras».

O próprio SARS-CoV-2 deveu o seu sucesso à menor mortalidade do que o seu antecessor, o SARS-CoV-1, que desencadeou uma pandemia declarada contida pela OMS a 5 de julho de 2003, apenas oito meses após o seu início. A taxa de letalidade de casos bruta do SARS-CoV-1 foi determinada em 10,9 por cento. A mesma taxa de letalidade por infeção do SARS-CoV-2, conhecidos no verão de 2020, situava-se entre 0,25 e 0,6 por cento. Foi a rapidez do SARS-CoV-1 a matar as suas vítimas que travou a sua propagação. Hoje é possível afirmar com rigor científico que o SARS-CoV-1 era dez vezes mais mortífero que o SARS-CoV-2. E com o mesmo rigor, contra todos os negacionistas, pode afirmar-se que o SARS-CoV-2 é dez vezes mais mortífero que a gripe sazonal.

A par das suas características específicas, a pandemia da covid-19 partilha com todas as pestes modernas o facto de ser uma zoonose, ou seja, de nos atingir através de animais selvagens. Tudo indica que as novas pandemias estão ligadas às alterações climáticas. Pessoas e animais são forçados a abandonar os locais onde vivem e a estabelecer outras formas de contacto que favorecem a passagem de vírus de entre diversas espécies de animais e seres humanos.

Esta pandemia estava há muito anunciada e a próxima está ainda mais anunciada. As agendas científicas, políticas e cívicas não poderão ignorar o que a covid-19 mostrou sobre a nossa desigual vulnerabilidade neste mundo.

 

30
Jan22

As terceiras eleições da pandemia

João Miguel Almeida

Um ano depois das eleições presidenciais voltamos às urnas, nas terceiras – e esperemos que últimas – eleições na pandemia da covid-19.

Cumpri o meu dever cívico pouco depois do meio-dia, numa escola pública do Lumiar. Estava bastante deserta. As poucas pessoas que se viam circulavam de máscaras postas, devagar, talvez com o ar aborrecido de quem se sente obrigado a cumprir um dever.

A minha secção de voto costuma ser bastante concorrida e situar-se num primeiro andar. A fila enche uma escada que vou subindo, paciente, degrau a degrau. No ano passado, as pessoas deixavam vários degraus entre elas, por uma questão de segurança.

Hoje as escadas estavam vazias. Galguei-as, surpreendido. Assomei à porta da sala e não tinha ninguém à minha frente. Foram as eleições mais rápidas da minha vida.

Votei usando a esferográfica que estava ao meu dispor na sala. Só depois me lembrei que seria mais seguro levar comigo uma esferográfica. Quando regressei a casa, desinfetei as mãos – aqui ficam dois lembretes para quem ainda não votou.

Espero que esta calma não anteceda uma tempestade. Espero que os demasiado calmos para sair de casa não acordem amanhã num país não só assolado pela peste, mas também mergulhado em mais uma guerra política.

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