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Diário do Ano C-19

Diário do Ano C-19

01
Out21

Voar num mundo covid-19

João Miguel Almeida

Esta semana voei pela primeira num avião desde o início da pandemia covid-19. Fui a um congresso em Espanha, quebrando um ciclo de estranhos encontros e reencontros via zoom. A sensação foi de um regresso quase perfeito à normalidade perdida.

O «quase» aí está para nos lembrar de um passado que teima em continuar presente e ameaça ser futuro. O mais aborrecido do «quase» são as saídas e entradas do avião «por filas», processo que não evita a proximidade entre passageiros no estreito corredor do avião e o torna muito mais lento.

Estes processos têm sempre o seu momento de incongruência cómica. Deu-me vontade de rir quando, após uma chamada criteriosa, a conta gotas, de grupos especiais de passageiros e de algumas filas, foram chamados os passageiros «entre a fila 15 e 30», anulando num passe de mágica o prudente distanciamento entre pessoas que, como se fossem atraídas pelo íman da voz, formaram rapidamente uma massa condensada de corpos.

As viagens de avião foram enriquecidas com o ritual da «toallita hidroalcohólica», distribuída à entrada, como se fosse uma bênção. O passageiro deve recebê-la, agradecido, usá-la para desinfetar as mãos e entregar os resíduos a um hospedeiro que passa com um cesto. São um fraco substituto da comida, das bebidas e dos jornais que eram distribuídos, gratuitamente ou a pagar, antes da covid-19 e da crise na aviação que levou a brutais cortes de despesas.

Quanto à burocracia da viagem propriamente dita, foi carregada com o QR e o formulário de saúde exigido, respetivamente, pelas autoridades de saúde espanholas e portuguesas.

Às inovações curiosas é acrescentado o procedimento já habitual do uso de máscara. A dúvida sobre as circunstâncias em que o uso é obrigatório não são apenas dos estrangeiros. Os próprios espanhóis têm uma noção vaga das regras em vigor no local em que se encontram, pois, dizem, as regras estão sempre a mudar e mudam de autonomia para autonomia.

Apesar dos «quase», o regresso a um aspeto da normalidade perdida teve um sabor a liberdade reconquistada.

05
Ago21

O Segundo Verão da Pandemia

João Miguel Almeida

Nas minhas férias de praia no segundo verão da pandemia regressei a Monte Gordo, após o atípico verão passado, o primeiro da covid-19 e o primeiro, em vários anos, a ser passado noutra praia. Apesar de não possuir termo de comparação, fiquei com a sensação de que, em 2020, o pânico da covid-19 me proporcionou, paradoxalmente, uma série de experiências raras no sítio em questão: abundantes lugares para estacionar o carro; muitas mesas de restaurante por onde escolher. E um ambiente relativamente descontraído.

Estar em Monte Gordo em tempos de covid-19 permite um exercício de «descubra as diferenças». As mais óbvias são as máscaras na cara da maior parte das pessoas. Mais subtis são os espaços maiores entre os chapéus-de-sol.

Mesmo no calçadão de Monte Gordo a sensação é de «business as usual» - com máscaras. Uma multidão densa e variada movimenta-se no calçadão ao longo do qual são vendidos livros antigos e novos, doces e comezainas várias, brinquedos e roupas, artesanato e um imenso etc. Além das barracas a vender comida e produtos vêem-se ainda uma série de pessoas que oferecem serviços e performances, a começar pelo desenho ou pintura de retratos.

Mais surpreendente ainda é a continuação de uma espécie de feira popular onde em especial as crianças se entretêm com carrinhos de choque, o clássico carrossel, a original «casa dos piratas das caraíbas», etc. Alguns destes espaços de entretenimento parecem ilhas «covid-19», pois as crianças que neles se veem são as crianças de todos os verões.

Se as máscaras fossem mais animadas podíamos imaginar que estávamos numa mistura de carnaval e de verão. Mas as máscaras são as higiénicas máscaras brancas ou azuis, tapando talvez sorrisos e pedindo distanciamento.

Apesar da covid-19, ou por causa da covid-19, parece mais urgente gozar a felicidade que o verão nos pode oferecer.

 

 

04
Ago21

A Quarta Vaga

João Miguel Almeida

Em grande parte vacinados e de férias, os portugueses gostavam de se entregar à ilusão de que a quarta vaga de covid-19 já passou e de aqui para a frente viverão numa «normalidade» qualquer.

Infelizmente os indicadores resistem a esta visão otimista, mostrando o quadro complexo em que temos de viver (ver o relatório aqui). O R(t) desceu para 0,92, o que parece ser um nível aceitável, apesar do levantamento das restrições. Tudo indica que a explicação é, em grande parte, «natural»: no verão a atmosfera mais seca e o maior convívio ao ar livre diminuem o risco de contágio.

A vacinação mantém o nível de mortes baixo, mas o número de pessoas internadas e em cuidados intensivos não é assim tão baixo: hoje há 919 pessoas internadas e 204 em cuidados intensivos. A vacinação completa e a melhoria nos tratamentos salvam muitas pessoas de morrer, mas são menos eficazes a afastar pessoas de internamentos em hospitais.

Ainda assim, o número de mortes é relativamente elevado: hoje morreram 15 pessoas. No verão passado, morriam três ou quatro pessoas por dia com covid-19, dando margem de manobra a muitas teorias da conspiração e negacionistas acerca da pandemia. A estatística responde facilmente ao problema: se a incidência da doença é elevada – hoje há em Portugal 384,5 casos de SARS-CoV-2 por cem mil habitantes, mesmo que a percentagem de mortalidade seja baixa, nunca nos há-de parecer suficientemente baixa.

A «luz verde» que gostamos de associar à «bandeira verde» das praias de verão será sempre relativa. O processo de aprendizagem de convívio com o vírus SARS-CoV-2 está longe de ter terminado.

23
Jul21

A vacina contra a covid-19 como ritual

João Miguel Almeida

A vacina contra a covid-19 vai ficar como uma das memórias coletivas de 2021. Para alguns dos meus conhecidos é uma memória associada ao incómodo e mal-estar dos efeitos secundários. Não foi o meu caso. Tomei as duas doses da vacina da Pfizer, sem efeitos secundários relevantes. Após a primeira dose senti uma sonolência fora do normal. À noite deitei-me vestido em cima da cama, esperando recuperar da quebra física e ainda fazer alguma coisa. A minha mulher não me acordou, pensando que mais tarde ou mais cedo me ia levantar e vestir o pijama. Acordei no dia seguinte vestido em cima da cama. Na memória coletiva, não é possível separar tragédias de anedotas, a vida mistura tudo, ou é o nosso cérebro, ou o nosso coração, que mistura os sentimentos e emoções mais diversos.

Tomei a primeira dose da vacina contra a covid-19 no estádio universitário de Lisboa. Captei uma atmosfera de uma certa tensão, às vezes de solenidade. Pensei que todos os procedimentos meticulosos organizados para vacinar as pessoas em massa tinham qualquer coisa de ritual de purificação coletiva, eram uma versão secular e moderna de antigas cerimónias religiosas para afastar o mal. Na segunda dose, o ambiente era bem mais descontraído, as pessoas estavam ali para se despachar. O tempo de recobro pareceu passar mais depressa.

Convém não esquecer que estamos muito melhor do que há um ano, quando ainda não havia sequer a certeza de que uma vacina contra a covid-19 seria possível. Mas é ilusório pensar que estamos completamente seguros e podemos baixar a guarda – os números dos últimos dias, em especial em Lisboa, estão aí para o mostrar.

 

13
Jul21

A vida dos outros na pandemia

João Miguel Almeida

Uma pessoa vai à garagem fazer a revisão do carro e recebe um inesperado elogio do garagista por o carro ter andando tanto no último ano. A conversa continua e o garagista explica melhor: são cada vez mais, sem conta, os carros que aparecem na garagem e que, desde a última revisão, andaram apenas trinta quilómetros. Não três mil, não trezentos, apenas trinta quilómetros num ano. «Isto não acontecia antes da covid-19», sublinha.

A partir daqui emerge toda uma imagem da vida de outros, muitos outros, durante a pandemia. Têm carro e se saem tão pouco por causa da covid-19 também devem evitar os transportes públicos. O mais provável é que ganhem a vida em teletrabalho. Não devem ter filhos, caso contrário fariam quilómetros a levá-los à escola. Passam dias e dias, semanas e semanas, meses, dentro de casa, frente a um ou dois ecrãs, a trabalhar e a comunicar. Usam o carro para visitar alguém da família, quando é mesmo necessário, ou fazer compras, as indispensáveis.

Assim passam um ano até que, para cumprir a lei, levam o carro à revisão.

A covid-19 tem estragado a cabeça a muita gente.

24
Mar21

O regresso à escola presencial

João Miguel Almeida

O regresso às aulas presenciais não foi um regresso das crianças aos tempos pré-covid. Algo mudou, algo está sempre a mudar e só retrospetivamente nos apercebemos do sentido dessas mudanças.

Ir buscar o meu filho à escola tornou-se também um exercício de memória. A entrada da escola, antes povoada de crianças, pais, auxiliares, uma agitação de brincadeiras, reencontros, sinais de reconhecimento, conversas postas em dia, é agora um espaço vazio vigiado por um porteiro com máscara azul.

Muitas fitas de plástico desenham o recreio como se fosse um labirinto ou um puzzle de «cenas de crime». O meu filho foi chamado pelo porteiro e veio ter comigo atravessando o recreio vazio e silencioso. Explicou-me que as fitas de plástico se destinam a definir os espaços onde as crianças podem brincar, confinadas por paredes mentais. Os miúdos já não jogam à bola. Inventaram um jogo de substituição que, explicou-me, é um misto de «futebol humano» e «manteiga derretida».

Hoje, a propósito de um TPC, disse que as «crianças precisam de sonhar para poderem ser felizes». A imaginação tem funções melhores do que construir paredes invisíveis.

 

 

18
Mar21

Pensar a nossa condição a partir da covid-19

João Miguel Almeida

Viriato Soromenho-Marques deu uma entrevista à Rádio Renascença em que faz considerações acerca do que a experiência da covid-19 nos diz da nossa condição humana (ver aqui). Esta pandemia obriga-nos a repensar o nosso lugar no mundo e a nossa relação com o tempo. Um dos «gurus» do nosso tempo, Yuval Noah Harari, escreveu no Homo Deus, para muitos o livro que revelava o futuro da humanidade: «The era when humankind stood helpless before natural epidemics is probably over. But we may come to miss it.» E admitia apenas que a humanidade voltasse a ser flagelada por epidemias criadas em laboratório e usadas em alguma guerra movida por uma ideologia tresloucada. 

Por enquanto, não podemos excluir completamente a hipótese do vírus da covid-19 ter sido criado em laboratório e espalhado por acidente. Mas, ainda que isso seja verdade, a destruição de habitats naturais pelas alterações climáticas potencia a passagem de vírus de animais selvagens para os seres humanos e pode desencadear outras pandemias. 

No essencial, estou de acordo com Viriato Soromenho-Marques. Discordo na importância que atribui à ausência de medidas mais restritivas no Natal no desencadeamento do pico pandémico de janeiro. Até agora o maior erro do governo foi não ter controlado as viagens entre o Reino Unido e Portugal após a descoberta da estirpe britânica da SARS-CoV-2. Medidas mais restritivas no Natal não teriam sido cumpridas. É impossível controlar o comportamento das pessoas na sua própria casa. Para muitos, «a ficha» sobre a pandemia só caiu em janeiro, com o surto epidémico.

Agora é preciso que a fadiga e a vontade de esquecer uma experiência traumática não se sobreponham à necessidade de pensar como é que a nossa sociedade se pode tornar mais resiliente para enfrentar situações deste género.

 

16
Mar21

Um ano de blogue

João Miguel Almeida

Comecei a escrever este blogue há exatamente um ano, com um título improvisado, movido por um sentimento de urgência de escrever para processar uma avalanche de informações contraditórias, emoções, acontecimentos e mudanças da vida quotidiana de todos. Estávamos a entrar no primeiro confinamento e pouco se sabia da covid-19. A margem de manobra para as teorias da conspiração e as atitudes negacionistas era gigantesca. Não tinha nenhuma teoria sobre o que estava a acontecer nem receita para evitar o desastre. Criticava as teorias e as receitas que me pareciam perigosas, partilhava as ideias que me pareciam animadoras. Um ano depois continuo a não saber muito sobre o que se está a passar. E desconfio de quem diz ter muitas certezas sobre o que está a acontecer.

Sabemos muito pouco sobre este vírus – o que é, donde veio e, principalmente, não sabemos o que será. Nem podemos excluir a hipótese de o vírus ter sido criado em laboratório e de um acidente estar na origem da pandemia. Duas coisas penso que é possível afirmar: primeiro, esta pandemia não é apenas uma gripe mais assanhada; segundo o confinamento é devastador para a economia e a saúde mental, é uma solução de último recurso, mas dá resultados na diminuição do número de novos casos, mortes e internados, incluindo em cuidados intensivos.  

Ao longo de um ano este blogue tornou-se um repositório de comentários, imagens e vídeos sobre o modo como os portugueses estavam a viver a pandemia e a pensar sobre ela. Não tem intenção de ser muito completo. Durante alguns tempos assumi mesmo a fadiga de escrever sobre a pandemia. Mas a covid-19 não se fatigou de nós. Ela continua aí, esperemos que não por muito mais tempo, esperemos que nunca mais de um modo descontrolado.

Da quase centena de textos que escrevi neste blogue, alguns merecerão ser relidos quando a covid-19 já fizer parte de um passado suficientemente distante para o podermos revisitar com curiosidade e alívio – as crónicas dos nossos dias atormentados, do humor que nos ajudou a passar as horas, dos sinais de esperança, dos momentos, apesar de tudo, felizes.

 

 

11
Mar21

Cansaço do ensino à distância

João Miguel Almeida

O anúncio de que na próxima semana as crianças do primeiro ciclo já podem voltar à escola, chega num momento em que o cansaço do ensino à distância está instalado.

Tanto eu como o meu filho estamos numa situação de relativo privilégio. Durante o primeiro confinamento o meu filho tinha oito anos, ou seja, já tinha autonomia suficiente para não exigir um acompanhamento contínuo, mas ainda gostava de estar com os pais. Apenas um ano depois não mudou assim tanto, mas deu mais sinais de impaciência e aborrecimento do que da primeira vez. Está a crescer.

O trabalho escolar é síncrono e assíncrono, cada um com os seus problemas próprios. Os problemas habituais das aulas  - os miúdos falarem ao mesmo tempo e atropelarem-se uns aos outros, são reinventados e potenciados online, exigindo outro tipo de intervenção do professor. No caso concreto do meu filho, a professora teve de enviar emails de advertência a alguns pais e ameaçar a expulsão das aulas online, marcando falta, a alguns alunos. Deu resultado.

Além dos problemas de ruído que podem afetar tanto os miúdos como os pais que estejam em teletrabalho na mesma divisão da sala, há situações de exasperação relativas ao trabalho escolar assíncrono. Alguns pais desesperaram ao verem-se obrigados a submeterem num padlet meia-dúzia de vezes o trabalho do filho para verificarem que, outras tantas vezes, o trabalho desaparecia misteriosamente. O problema era técnico. Além destes problemas que parecem fora do alcance de pais e professores, alguns miúdos apagaram trabalhos de colegas, com uma atitude que não é de hoje, mas com uma capacidade de perturbar outros miúdos e respetivos pais sem precedentes.

Todas estas questões que desgastam famílias com pais em teletrabalho e capacidade para lidar com novas tecnologias adquirem uma dimensão esmagadora em famílias com pais ausentes e/ou sem capacidade para ajudar os filhos.

Após esta experiência mais ou menos traumática todos nós devíamos dar mais valor às aulas presenciais em contexto escolar.

 

 

 

 

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