As Flechas de Apolo
Na Ilíada, Homero atribui o flagelo da peste que devastam o exército grego às flechas de Apolo, um deus curandeiro e capaz de usar os vírus como uma arma contra os gregos, que quis castigar por terem raptado a filha de um dos seus sacerdotes preferidos: «depois de lançar uma flecha contra os próprios homens, castigou-os sem parar e piras fúnebres com os corpos arderam sem cessar. Nove dias sofreu o exército as flechas de deus. Contudo, ao décimo dia, Aquiles convocou o povo para uma assembleia (…) pois ele sentia pena dos gregos ao vê-los assim.»
No século XXI ninguém recorre a histórias de deuses para dar sentido a uma pandemia, mas os sofrimentos e as emoções humanas perante a peste continuam a ser basicamente os mesmos. As teorias da conspiração mais absurdas coexistem com um conhecimento científico que continua a ser lacunar em relação à covid-19, mas que não pode ser desprezado no combate à doença. A Flecha de Apolo, um livro de divulgação científica sobre a covid-19, escrito no verão de 2020, mostra o que sabemos sobre o vírus SARS-CoV-2 e dá-nos muita informação relevante sobre políticas de saúde pública em contexto pandémico. O autor é médico e sociólogo, com um bom conhecimento da História e da mitologia grega, qualidades que, reunidas, contribuem para a legibilidade e interesse do texto.
O livro contém uma estimativa sobre o período em que a humanidade alcançará a imunidade de grupo, feita antes das vacinas serem produzidas e distribuídas em massa: será este ano, 2022 que, por métodos naturais ou vacinação, o SARS-CoV-2 se tornará endémico. Passará a haver apenas pequenos surtos ocasionais de covid-19 entre pessoas não imunes. É claro que a via natural tem um custo elevadíssimo em mortes e qualidade de vida. Há uma frase que, lida agora, parece anunciar a chegada da Ómicron: «Tipicamente, com o tempo, os vírus tornam-se menos letais como resultado da sua propagação preferencial e da sobrevivência de estirpes mais ligeiras».
O próprio SARS-CoV-2 deveu o seu sucesso à menor mortalidade do que o seu antecessor, o SARS-CoV-1, que desencadeou uma pandemia declarada contida pela OMS a 5 de julho de 2003, apenas oito meses após o seu início. A taxa de letalidade de casos bruta do SARS-CoV-1 foi determinada em 10,9 por cento. A mesma taxa de letalidade por infeção do SARS-CoV-2, conhecidos no verão de 2020, situava-se entre 0,25 e 0,6 por cento. Foi a rapidez do SARS-CoV-1 a matar as suas vítimas que travou a sua propagação. Hoje é possível afirmar com rigor científico que o SARS-CoV-1 era dez vezes mais mortífero que o SARS-CoV-2. E com o mesmo rigor, contra todos os negacionistas, pode afirmar-se que o SARS-CoV-2 é dez vezes mais mortífero que a gripe sazonal.
A par das suas características específicas, a pandemia da covid-19 partilha com todas as pestes modernas o facto de ser uma zoonose, ou seja, de nos atingir através de animais selvagens. Tudo indica que as novas pandemias estão ligadas às alterações climáticas. Pessoas e animais são forçados a abandonar os locais onde vivem e a estabelecer outras formas de contacto que favorecem a passagem de vírus de entre diversas espécies de animais e seres humanos.
Esta pandemia estava há muito anunciada e a próxima está ainda mais anunciada. As agendas científicas, políticas e cívicas não poderão ignorar o que a covid-19 mostrou sobre a nossa desigual vulnerabilidade neste mundo.