Dos marcianos
A metáfora da «guerra» tem sido utilizada para descrever a atual luta contra a pandemia do covid-19. Outras vezes são as ideias e as imagens da ficção científica que são evocadas para interiorizar cenários e processos inusitados pela pandemia e especular sobre o que ainda pode acontecer.
Há um famoso livro de ficção científica que tem a palavra «guerra» no título e em que os vírus desempenham um papel decisivo – é A Guerra dos Mundos de H.G. Wells. O problema na comparação é que os mundos em guerra são os dos invasores marcianos e dos terrestres. E nesta ficção os vírus desempenham um papel benigno, do ponto de vista da humanidade, pois, quando os humanos estão prestes a ser dizimados pelos marcianos, estes sucumbem aos vírus terrestres contra os quais não têm imunidade.
H.G. Wells usava a ficção científica para criticar o mundo em que vivia. As ambições dominadoras dos marcianos podem ser lidas como uma crítica às manifestações mais patológicas do colonialismo europeu. A questão perturbadora é se algumas ideias e imagens da Guerra dos Mundos não podem ser transpostas para a atualidade. A atual «guerra dos mundos» é uma guerra interior à Terra, entre seres humanos alienados, empenhados em sugar a energia vital da casa comum, e os seres que deixaram se ser protegidos pelos equilíbrios naturais.
Face ao ecossistema terrestre e ao que tem sido o passado humano, todos nós estamos a tornar-nos marcianos, embora uns mais do que outros. Yuval Noah Harari escreveu em Homo Deus: «A era em que a humanidade ficava indefesa perante epidemias naturais provavelmente acabou. Mas podemos chegar a ter saudades desse tempo.»* Em Sillicon Valley alguns génios tecnológicos adotaram como lema «equality is out, immortality is in» e gastam milhões de dólares para descobrir os segredos da imortalidade humana. Michio Kaku no seu livro O Futuro da Mente visionou o tempo em que as pessoas, a partir de uma certa idade, transferiam as suas mentes para corpos pós-biológicos.
De súbito, mesmo os mais marcianos dos humanos são forçados a perceber que a humanidade ainda não é imune a pandemias; que uma sociedade como Singapura que não é um modelo de igualdade mas era um modelo de sucesso no combate à pandemia descobriu que o seu calcanhar de Aquiles eram os trabalhadores ilegais a viver em espaços exíguos e que não os ter tido em conta pode ter comprometido todo o seu programa de combate ao covid-19; que as nossas mentes podem explorar o ciberespaço, mas os nossos corpos continuam tão vulneráveis a vírus como os dos nossos antepassados romanos ou medievais.
A pandemia do covid-19 teve a sua origem num «wet market» (o «wet» é do sangue dos animais derramado frente aos clientes, ver aqui) da China, numa sociedade que foi buscar à Europa o modelo capitalista e o modelo teórico-político de combate ao capitalismo, articulando ambos de uma forma surpreendente.
Os vírus que desencadeiam o covid-19 passaram dos animais selvagens para os seus predadores – os seres humanos – atacando de tal modo toda a sua espécie, a economia, a política e a sociedade que estão a ter impacto no consumo e no ecossistema. Nos últimos tempos a palavra «antropoceno» tinha entrado na moda – o homem adquirira a capacidade de ser o fator principal na mudança do clima. No entanto, em poucas semanas, as alterações climáticas deixaram de ser o que eram antes da entrada em cena desses pequenos seres invisíveis que lançaram contra nós a epidemia do covid-19.
Esperemos que esta história acabe bem, como A Guerra dos Mundos de H.G. Wells. Mas para tal acontecer teremos de combater não só a expansão dos vírus, mas também a expansão desse outro inimigo interior, os marcianos.
*tradução minha a partir da versão inglesa da edição Vintage da Penguin Random House, p. 16.