Para agora recordar
Agora que se tornou óbvio que se deu um descontrolo da pandemia na sequência de um relaxamento de medidas governamentais e de um baixar da guarda de muitas pessoas no Natal, é preciso lembrar que as responsabilidades pelo descambar da pandemia não podem ser só divididas entre um governo demasiado complacente e cidadãos demasiado inconscientes. Cientistas, jornalistas, influenciadores e políticos, nomeadamente André Ventura e o Chega, contribuíram ativamente para uma espécie de contracultura que banalizou a pandemia, incutiu falsas esperanças, confundiu a prudência dos poderes públicos com intenções opressivas e alimentaram teorias da conspiração.
É claro que é injusto meter cientistas a sério, políticos demagógicos e maluquinhos da conspiração no mesmo saco. Mas estes «strange bedfellows» convenceram cidadãos ignorantes, incautos ou demasiado autoconfiantes e «wishful thinking» a relativizar as recomendações de médicos, autoridades sanitárias e govenantes.
Lembro, por exemplo, que em outubro de 2020 um grupo de cientistas apostava na imunidade populacional como forma de combater a pandemia. Gabriela Gomes, uma epidemiologista portuguesa, anunciava que a imunidade populacional estava prestes a ser atingida e não era expectável um crescimento descontrolado da doença (ver aqui). Em entrevista a Miguel Sousa Tavares na televisão, Gabriela Gomes mostrou-se particularmente otimista em relação à população portuguesa, que teria particularidades biológicas que lhe permitiram alcançar a imunidade mais cedo do que, por exemplo, a população do Reino Unido. Antes do final de 2020, haveria imunidade populacional em Portugal contra a covid-19. Eu próprio quis acreditar nas teorias de Gabriela Gomes. Felizmente, o meu otimismo não me levou a baixar a guarda.
António Costa cometeu um erro político ao confiar demasiado no bom senso dos portugueses no Natal. Mas o negacionismo de André Ventura e do Chega estiveram para lá do erro político – promoveram ativamente comportamentos favoráveis ao crescimento da pandemia.
Nas vésperas de eleições presidenciais, é importante imaginar como seria gerir uma pandemia destas com André Ventura como Presidente da República e um governo dependente do suporte parlamentar do Chega – ou até com um ministro deste partido, quem sabe como ministro da Saúde.
Espero que o bom senso que muitos deixaram fugir no Natal, comece a regressar.